Direito à propriedade privada para Locke
Quando tenho direito à propriedade privada? Em condições é legítimo que diga que algo é meu? Quando a desigualdade de riqueza e propriedade observada entre as pessoas é justa?
Ainda no século XVII, John Locke, um filósofo defensor da ideia de direito natural criou uma explicação que se aproxima muito daquilo que pensamos ser a origem do direito de propriedade. Suas ideias estão no livro Segundo Tratado sobre o Governo Civil, no segundo livro, capítulo V. Em linhas gerais, defende que as pessoas são donas de si mesmas e, portanto, do seu trabalho. Assim, quando exercem esse trabalho sobre um bem que é natural, como ao cultivar a terra para produzir alimento, têm o direito de dizer que que o alimento é produzido é seu. Mas isso é o resumo da história. A parte mais interessante é como Locke chega a essa conclusão.
Tudo é de todos
O ponto de partida das reflexões de Locke sobre o direito de propriedade é a compreensão de que a natureza e tudo o que ela oferece, incluindo a terra, a água, o ar, os alimentos, os animais é um bem comum.
Segundo o filósofo, diferentes evidências conduzem a essa conclusão. Se, argumenta ele, “consideramos a razão natural”, perceberemos que “os homens, desde o momento do seu nascimento, têm o direito a sua preservação e, consequentemente, a comer, a beber e a todas as outras coisas que a natureza proporciona para sua subsistência”1. Além disso, para aqueles que acreditam na existência do Deus Cristão, de acordo com a Bíblia, Deus “deu a terra aos filhos dos homens”. Ou seja, a terra e tudo o que ela oferece para a sobrevivência humana não foi dada a uma pessoa em particular mas a todos.
Surge assim o seguinte problema: é possível se apropriar legitimamente de um bem comum? Deve haver uma forma de nos apropriarmos dos recursos naturais, do contrário jamais poderíamos usá-los em nosso benefício, raciocina Locke. Afinal, de que adianta a natureza produzir animais e frutas em abundância se devessem sempre ser considerados bens comuns e uma pessoa jamais pudesse pegar para si, dizer que é seu e usá-los? Mas qual é essa forma?
Meu corpo é meu, o resultado do trabalho também é meu
John Locke acredita que podemos nos apropriar legitimamente de algo que é um bem comum através do trabalho.
O primeiro passo do seu argumento de Locke é a alegação de “ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa”1. Ou seja, meu corpo é meu. Tenho direito exclusivo sobre ele, pois não é uma propriedade comum.
Mas não é apenas o corpo físico que é minha propriedade. Tudo aquilo que ele é capaz de fazer também é meu. Imagine a seguinte cena. Vivemos na selva e há uma laranjeira carregada de frutas. Essa laranjeira é propriedade comum, pertence a todos os membros da espécie humana, a mim e a você. No entanto, a partir do momento que me dou o trabalho de colher alguns de seus frutos, estou misturando algo meu (o trabalho) a esse bem comum. E a partir desse ato posso dizer legitimamente que as laranjas são minhas. Portanto, é a partir do trabalho que se origina o direito à propriedade privada.
Assim, se o corpo é meu, o resultado do trabalho realizado por é também é meu. O pensamento liberal, ao qual Locke se filia, valoriza uma série de direitos, como o direito à vida e o direito à propriedade, por exemplo. É importante notar que a base para justificar ambos são semelhantes: a propriedade do próprio corpo. Se o corpo é meu, você não pode violá-lo, agredi-lo, tirar sua vida. Da mesma forma, não pode tirar minhas propriedades, pois essas são como uma extensão desse corpo.
Mas tem uma condição…
Locke afirma que somos donos de tudo aquilo que produzimos através do nosso trabalho usando recursos naturais. Mas tem uma condição – desde que o que restar seja “suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade”1. Ou seja, não podemos nos apropriar de todos os bens comuns, mesmo que trabalhássemos o suficiente para isso. Temos que deixar para os outros, porque a natureza é uma espécie de presente dado à humanidade, não à uma pessoa.
Conclusões
O que dizer das ideias de Locke? Quais suas consequências? O raciocínio parece simples, claro e convincente. Porém, o que exatamente ele exige na prática? Será que nossas leis de propriedade, por exemplo, estão de acordo com as condições de Locke para podermos dizer que temos direito à propriedade?
Thomas Paine (1737-1809), um pensador político Inglês, extraiu das ideias de Locke consequências bastante impopulares: a ideia de uma renda básica. Paine argumentou, como Locke, que a natureza é um bem comum. Também como Locke, defendeu que todos têm direito a usar dela para seu sustento e ninguém deve ser privado desses recursos porque algumas pessoas se apropriaram de tudo.
Como na Inglaterra do século XIX muitas pessoas não tinham qualquer acesso aos recursos naturais, defendeu que fossem indenizadas. Como? Uma forma seria desapropriar as terras daqueles com grandes propriedades e distribuí-las aos demais. Porém Paine teve outra ideia. Defendeu que todos os proprietários deveriam pagar um valor que seria depositado em um fundo e distribuído na forma de uma renda básica para toda a população. Esse valor seria uma compensação paga por aqueles que se apropriaram dos bens comuns pelo fato de terem deixado os demais sem nada.
Referência
Locke, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Editora Vozes, s.d.